Um Relatório Raio-X à Bacia do Douro
A ANP/WWF elaborou um relatório que apresenta uma radiografia da bacia hidrográfica do Douro centrada nos impactes das infraestruturas hidroeléctricas e outras barreiras transversais aos seus rios, nas acções e estratégias promovidas pelos diversos actores envolvidos para mitigar esses impactes, e na proposta de recomendações no âmbito das responsabilidades diferenciadas de decisores políticos, empresas e sociedade civil.
O Contexto
A bacia hidrográfica do rio Douro é uma bacia internacional partilhada por Espanha e Portugal, sendo a maior das bacias da Península Ibérica. A parte portuguesa ocupa parte significativa das regiões Norte e Centro, passando de um território interior de características mediterrânicas e continentais vincadas para outro litoral de cariz mais atlântico. O rio principal percorre cerca de 927 km desde a sua nascente em Espanha até à foz, junto à cidade do Porto.
A bacia apresenta um elevado potencial hidroelétrico, devido quer aos significativos desníveis topográficos quer aos elevados valores de precipitação nas suas cabeceiras. No século XX, o crescimento exponencial da procura de água doce para rega, abastecimento doméstico e industrial, e produção energética, levou a uma crescente fragmentação da bacia do Douro, com a instalação de açudes e barragens de dimensões crescentes, estando atualmente identificadas mais de mil barreiras (1193) só na parte portuguesa.
O troço fronteiriço do rio Douro é de particular relevância para ambos os países, o que esteve na base dos primeiros acordos ibéricos sobre recursos hídricos. O acordo de 1927 em particular visou a partilha desse potencial hidroelétrico entre Portugal e Espanha, tendo sido sucessivamente incorporado nos acordos seguintes – 1964, 1968, e no atualmente em vigor, de 1998: a Convenção de Albufeira.
De ambos os lados da fronteira a produção hidroelétrica é o principal uso dos recursos hídricos da bacia (ainda que não-consumptivo), seguindo-se o regadio, e o abastecimento urbano e industrial.
O Recurso
O livre curso dos rios e linhas de água garante um conjunto importante de benefícios para todos nós (os chamados serviços dos ecossistemas), nomeadamente os associados aos ciclos da água, dos sedimentos e nutrientes. Estes ciclos podem ser alterados não apenas pela interrupção ou alteração desse livre curso (alterações hidromorfológicas associadas a barragens, açudes, canais, regularização de margens), mas também pelas modificações de uso do solo na bacia de drenagem, que alteram o tipo e quantidade de sedimentos e nutrientes transportados pela água.
Os principais serviços dos ecossistemas fluviais como os da bacia do Douro incluem os de regulação (e.g. depuração da água, conferindo-lhe maior qualidade; deposição de sedimentos, impedindo a erosão costeira a jusante), de provisão (e.g. água, fibras vegetais, recursos piscícolas), e culturais (e.g. turismo, lazer, espiritual). Todos eles têm sido profundamente afetados pela fragmentação dos rios da bacia, bem como por outras alterações significativas do uso do solo.
O Problema
Todas estas barreiras ao livro curso dos rios provocam maior ou menor fragmentação de habitats conforme a própria permeabilidade dessas barreiras, as características da vegetação nas margens (galerias ripícolas), entre outros fatores. Os mais graves impactes ambientais incluem:
- A perda de biodiversidade e conetividade ecológica (o rio perde a sua função primordial de
corredor ecológico); - A perda da capacidade natural dos ecossistemas em depurar a água (com a consequente diminuição da sua qualidade);
- A retenção de sedimentos a montante (com assoreamento da albufeira e erosão das margens, estuário e costa adjacente).
A Resposta
Vários atores e instituições têm proposto diversas medidas de mitigação e resposta a estes impactes, nomeadamente:
- As medidas incluídas no Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Douro, cuja execução é muito reduzida e pouco articulada com os objetivos ambientais definidos no âmbito da Diretiva-Quadro da Água;
- As medidas incluídas nos diversos Instrumentos de Gestão Territorial aplicados no território da bacia (Planos de Ordenamento Regional, Municipal, de Albufeiras e de Áreas Protegidas, entre outros).
Estão consagrados na legislação e nalguns destes instrumentos quer a remoção de barreiras obsoletas, quer a implementação de caudais ecológicos, isto é, a qualidade e quantidade de água que deve fluir regularmente num rio para que este mantenha os ecossistemas e os níveis de bem-estar humano que dele dependem. Ambas as medidas são da maior importância para garantir os benefícios associados aos corredores ecológicos fluviais. No entanto, ambas têm também carecido de um verdadeiro impulso político que lhes confira prioridade na implementação.
De facto, de acordo com os resultados dos trabalhos da Rede Douro Vivo, a eficácia e alcance destas medidas tem-se revelado insuficiente para mitigar ou reduzir significativamente o impacte desta fragmentação, sendo evidente a necessidade de abordar de forma mais direta, proactiva e participada, a recuperação das funções ecológicas dos rios, a melhoria do estado das suas massas de água, e a redução das pressões humanas.
As Soluções
Urge contabilizar os impactes desta fragmentação nos serviços dos ecossistemas do rio e seus afluentes, e tê-los em linha de conta nos processos de tomada de decisão. Estes devem incluir
todas as partes interessadas, e reconhecer os elevados custos ambientais, económicos e sociais destas infraestruturas hidráulicas. Estes elevados custos ambientais são razão suficiente para se evitar a construção de novas barreiras sempre que houver alternativas disponíveis para os fins em vista (e ponderados os custos das mesmas de forma integrada, nos planos ambiental, económico e social), e promover a remoção de barreiras obsoletas ou cujo uso não compensa os impactes negativos das mesmas.
Esta abordagem requer ações distintas da parte dos vários atores envolvidos, aos quais se recomenda:
Decisores políticos
- Não apoiar a construção de barragens e incentivar as alternativas energéticas mais eficientes e menos impactantes (e.g. eólica e solar);
- Promover ativamente projetos de restauro ecológico, áreas prioritárias de conservação e remoção de barreiras obsoletas;
- Aplicar e fiscalizar efetivamente os princípios do poluidor-pagador e do utilizador-pagador, as obrigações legais relativamente ao tratamento e rejeição de efluentes, e o regime de caudais ecológicos;
- Melhorar as redes de monitorização, a sistematização e disponibilização da informação produzida, e fomentar a participação pública efetiva dos interessados, incluindo no plano transfronteiriço, através duma operacionalização mais efetiva da Convenção de Albufeira e do seu Secretariado Técnico (CADC).
Empresas
- Gerir de forma integrada, coordenada, e preventiva a oferta e procura de água, e cumprir as obrigações legais no que toca à rejeição e tratamento de efluentes;
- Participar ativamente em projetos e iniciativas de responsabilidade empresarial pelos recursos hídricos utilizados na sua área e setor de atividade (Water Stewardship);
- Auscultar e envolver populações e partes interessadas, antes de tomadas de decisão sobre qualquer projeto de implementação territorial;
- No caso concreto das empresas concessionárias dos aproveitamentos hidráulicos, garantir e divulgar pública e atempadamente os caudais ecológicos, e implementar de forma efetiva e contínua os planos de mitigação e compensação de impactes.
Sociedade civil
- Usar de forma eficiente e parcimoniosa a água para consumo, evitando usos poluentes ou
contaminantes; - Fruir dos espaços naturais e denunciar práticas ilegais ou prejudiciais ao ambiente;
- Participar ativamente no planeamento e gestão dos recursos hídricos locais, nomeadamente
através dos processos de consulta pública e das iniciativas cidadãs.