Entrevista:

As barragens costumam ser entendidas como um sinal de progresso. Essa perceção comum, popular, representa um obstáculo para a missão do GEOTA de preservar os rios selvagens em Portugal? É também uma questão cultural, de desconhecimento dos efeitos negativos ao nível ambiental?

Às barragens está associada a ideia de desenvolvimento tecnológico, económico e até ambiental. Essa perceção é em muitos aspetos equivocada, blinda o debate sobre alternativas e desvaloriza os impactes ambientais e socioeconómicos negativos. Este tem sido o maior obstáculo ao nosso trabalho: desmistificar a inevitabilidade de destruirmos mais recursos naturais em prol do progresso.

Este posicionamento acaba por ser um resultado do que têm sido as políticas de investimento público, assentes na necessidade de aumentar e não adaptar as infraestruturas que temos. Mas também de uma desconexão crescente entre as comunidades e o meio natural, que tem levado à perda da perceção dos serviços prestados pelos ecossistemas. Sabemos que esta mentalidade é resultado da promoção destas obras como positivas, tanto no sistema de educação como na comunicação social, como pelos próprios decisores políticos e por empresas como a EDP. O que tentamos fazer primordialmente é precisamente alterar mentalidades, focando-nos em explicar não apenas os impactes das barragens mas sobretudo as alterativas viáveis em termos de disponibilidade de água e produção elétrica. Mas posso dizer que há alguns anos esse trabalho era bastante mais difícil do que é hoje. Casos como a barragem de Foz Tua, onde muitas promessas foram feitas e poucas foram cumpridas, em detrimento de um património natural e patrimonial único, começaram a alterar a perceção sobre os argumentos dos ambientalistas e das vantagens económicas para as regiões afetadas.  O mesmo em relação aos casos de poluição no Tejo, que vieram demonstrar o impacte que a poluição, potenciada pela estagnação da água em albufeiras, pode ter nas comunidades que dependem do rio.  

Qual é a importância social, ambiental e económica dos ecossistemas ribeirinhos e de que forma é que estes são afetados pelas barragens?

Os rios são as veias do nosso Planeta. Transportam água e nutrientes, desempenhando um papel muito importante no ciclo da água ao atuar como canais de escoamento de águas superficiais. Bloqueá-los tem um impacte direto em todas as funções dos ecossistemas. Uma barragem transforma os ecossistemas lóticos (de águas em movimento) em lênticos (de água paradas), alterando a heterogeneidade dos habitats e induzindo alterações significativas na qualidade e nos parâmetros físico-químicos da massa de água afetada. Travam as dinâmicas sedimentares, bloqueando o transporte de areias ao longo do rio e que se depositariam na linha de costa. Bloqueiam transversal e longitudinalmente a passagem de fauna, particularmente espécies de peixe migradoras, e fragmentam ainda mais o território para mamíferos como o Lince e Lobo Ibéricos. Afetam igualmente a distribuição de água, com alterações ao nível da recarga dos aquíferos. Podem criar alterações microclimáticas, aumentando a humidade relativa do ar,  o que potencia o risco de doenças nas vinhas, tendo implicações no custo do produto final, devido aos tratamentos utilizados. E em geral, impactes climáticos, porque as albufeiras são propensas à emissão de metano, um gás com um potencial de aquecimento global muito superior ao dióxido de carbono, devido à decomposição da matéria orgânica. Para além da implicação social e económica que estes impactes acabam por ter, destaca-se ainda a afetação da prática de vários desportos de águas bravas e a monotonização da paisagem, o que prejudica o turismo da região ao destruir algo que é raro e cada vez mais procurado: um rio livre.

Por outro lado, as barragens também estão associadas ao processo de transição para energias renováveis que é urgente exponenciar, atendendo às alterações climáticas. Esse contributo para as energias renováveis não compensa os efeitos negativos? 

Temos de desmistificar o papel das barragens na luta contra as alterações climáticas. Um estudo recente publicado na revista cientifica BioScience concluiu que, devido ao metano libertado nas albufeiras, as barragens podem emitir o equivalente a todas as emissões de dióxido de carbono do Brasil. Para além de emissores de gases de efeito de estufa, as barragens reduzem a nossa resiliência à subida do nível médio das águas do mar. Isto porque travam as areias que os rios outrora transportavam até à linha de costa. Em Portugal, são um dos principais responsáveis pela erosão costeira no litoral.   

O uso de energias não renováveis não é a única causa do efeito de estufa de origem humana e, logo, a transição para renováveis não é a única solução. Tão importante quanto isso é a alteração dos modos de produção alimentar, a redução do consumo de carne e a conservação de zonas naturais. Isso tem uma implicação direta na redução de gases de efeito de estufa e na preservação dos ecossistemas, sumidouros naturais de carbono. Mas o espaço para esse debate é substancialmente mais reduzido, porque não têm o mesmo potencial económico dos investimentos nas renováveis. E porque, em última instância, dependem de uma adaptação dos padrões de consumo, algo ainda hoje erradamente associado à perda de qualidade de vida. 

É precisamente no último ponto que surge a proteção dos rios, hoje os habitats mais ameaçados da Terra. 81% das populações globais de vida selvagem de água doce foram perdidas, mais do que em qualquer outro ecossistema. Segundo o Ministério do Ambiente, Portugal tem mais de 7 000 barreiras fluviais, desde açudes a grandes barragens. O número exato ainda não é conhecido para todas as regiões hidrográficas, nem as suas características, usos e estado. Recuperar algumas das existentes seria uma das possibilidades à construção de novas, uma vez que a maioria dos impactes ambientais e sociais já terá ocorrido.  

Outra das opções seria o investimento em eficiência energética, como o GEOTA tem defendido na última década. Segundo os nossos cálculos, um investimento em projetos de uso racional da energia equivalente à construção das novas barragens, pouparia 1,3 TWh/ano de electricidade. Com um investimento de 220M€, criaríamos uma poupança anual de 150M€, equivalente à redução de mais de 5% da factura eléctrica. A aposta em eficiência energética é de longe a melhor forma de obter energia, como prova a redução sistemática da intensidade energética ao longo das últimas duas décadas na União Europeia, EUA, Canadá, Rússia, China e Índia, entre outros. A aposta nas renováveis e, no geral, a abordagem à necessidade de aumentar a produção elétrica nacional, tem de ser analisada à luz das reais necessidades face aos potenciais de redução de consumos, o que por sua vez tem um impacte positivo para famílias, serviços e indústrias. 

Em Portugal, os estudos de impacto ambiental parecem ser uma mera formalidade burocrática, sem capacidade para travar empreendimentos com grande impacto no meio ambiente. Considera que os estudos de impacto ambiental deveriam ser reforçados e blindados relativamente a interesses políticos, empresariais e outros?

Em termos processuais, a Avaliação de Impactes Ambientais é teoricamente adequada. É nesse âmbito que surgem os Estudos de Impacte Ambiental (EIA), aos quais estão associados uma fase de consulta pública e a análise de uma Comissão de Avaliação (CA) constituída por representantes das entidades com diferentes competências e a quem cabe, entre outros, proceder à apreciação técnica do EIA. Já presenciámos casos em que esse processo vai além da mera formalidade burocrática, como foi o caso da mini-hídrica no Rio Vez, em Sistelo, também conhecida como o “Tibete Português”. Este projeto recebeu um parecer desfavorável porque os impactes negativos não compensavam os positivos e não eram passíveis de minimização. E o projeto foi travado. Contudo, estes estudos são encomendados pelo próprio proponente da obra e os resultados da consulta pública e dos pareceres recebidos não são vinculativos, servindo apenas de orientação para a tomada de decisão final, que cabe à Agência Portuguesa do Ambiente. Como e porque é tomada é a fase opaca do processo e, logo, impossível de compreender em que medida está sujeita a esses interesses. 

O Plano Nacional de Barragens tem sido motivo de várias suspeitas, envolvido em casos de alegada corrupção que estão a ser investigados. Isso não reforça a ideia de que o interesse público não foi acautelado?

Todo o processo do Programa Nacional de Barragens foi pouco transparente, a começar pela razão pela qual não foram equacionadas outras políticas energéticas como a aposta no solar ou na eficiência energética. Estes investimentos, ditos privados e supostamente rentáveis, acabaram por vir a ser subsidiados publicamente já depois de aprovados. Na Europa, esse apoio ao investimento é frequente no caso das mini-hídricas, mas que nunca encontrámos no caso de grandes barragens, até porque já quase não são construídas. Para além de que a maioria das barragens previstas no Programa Nacional de Barragens é de bombagem, que segundo a legislação nacional e europeia aplicável não pode sequer ser considerada energia renovável.

O GEOTA submeteu, por isso, na Procuradoria Geral da República, uma queixa-crime no ano passado, processo que se encontra em segredo de justiça. Independentemente dos contornos, omissões e permissões que a lei possa oferecer, as decisões tomadas não respeitaram o interesse público. As metas traçadas eram energéticas, o que várias outras soluções tecnológicas permitiriam atingir. Se as decisões estivessem assentes no cariz técnico, provavelmente não teriam sido tomadas. Ter-se-iam observado investimentos mais reduzidos e com menores impactes, ou a aposta na eficiência energética.

Têm sido denunciados vários focos de poluição no rio Tejo, com origem em determinadas indústrias. Considera que a fiscalização e controlo das autoridades têm sido eficazes? E as multas aplicadas são suficientes para impedir a reincidência? 

A fiscalização e o controlo das autoridades visam, de modo genérico, a verificação do cumprimento das obrigações das unidades industriais. No nosso entender é a montante que começam as falhas. Por um lado, a gestão partilhada com Espanha e o facto de Portugal se encontrar a jusante, com implicações no caudal afluente. A Convenção de Albufeira (Convenção sobre Cooperação para a Proteção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas) estabeleceu em 1998 os caudais mínimos e, em 2008, o regime de caudais mínimos trimestrais e mensais. Mas com um conjunto de exceções como em situações de seca. Também o facto de os caudais definidos não corresponderem aos ecológicos, faz com que o Tejo tenha menos água e, assim, agrave qualquer foco de poluição. 

Estas condições, para além de reequacionadas, têm de ser tidas em conta na gestão da bacia hidrográfica no que diz respeito à capacidade de carga do Tejo para receber efluentes de indústrias. Aqui entra a análise global das empresas que o fazem e, mediante autorização, terem de ajustar os seus processos de tratamento para assegurar a qualidade do efluente descarregado. As multas só são aplicáveis se verificado que uma unidade industrial está em incumprimento da sua licença, o que se tem verificado difícil de comprovar. E, estando em cumprimento, deveriam ser revistas, pois claramente têm um impacte significativo no meio hídrico. Ou seja, o esforço no reforço da fiscalização e controlo só se traduz nas melhorias do Tejo se as indústrias tiverem licenças adequadas, em quantidade e qualidade, ao meio em que descarregam. 

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